O
livro Pedro Páramo, publicado em 1955, foi a primeira novela
do escritor mexicano Juan Rulfo. Sua
obra influenciou no desenvolvimento do movimento literário realismo
mágico, dentro do contexto do boom
latino-americano.
Os escritores desse período que tiveram como destaque os anos 60 e
70, buscaram desafiar e superar o status
quo estabelecido
na literatura da época
através
da criação de obras experimentais. Fazem parte desse círculo do
boom
latino-americano os escritores da época que propuseram uma nova
estética de narrativa literária, baseada no maravilhoso, nos contos
fantásticos e de crítica à realidade social.
A
história do livro Pedro Páramo é iniciada a partir de Juan
Preciado, filho de Pedro Páramo, dono da fazendo Media
Luna
e cacique da cidade fictícia de Comala, onde se desenvolve o
romance.
Juan Preciado chega a cidade de Comala por influência
de sua mãe, que em leito de morte, lhe pede que vá para a cidade
encontrar seu pai e reclamar o que lhe é de direito, “Le apreté sus
manos en señal de que lo haría; pues ella estaba por morirse… No
vayas a pedirle nada. Exígele lo nuestro”.
Pedro
Páramo, pai de Juan Preciado, é um grande latifundiário que domina
e controla a cidade de Comala. Seu crescimento econômico acontece
quando se casa com Dolores Preciado, mãe de Juan e herdeira de
muitas terras. Através de seu prestígio e com a ajuda de seus
jagunços El Ticuate e Fulgor Sedano, Pedro Páramo torna-se um homem
muito respeitado na cidade.
Junto
ao Padre Renteria, os dois detêm grande poder sobre a vida e a morte
das pessoas na cidade. Pedro Páramo é um homem com autoridade acima
de todos e que manda torturar e matar quando lhe parece conveniente.
Como quando ordena assassinar o pai de Susana, Bartolomé
San Juan, para poder casar-se com ela. Em conversa, Pedro Páramo e
Fulgor Sedano acordam a morte do velho: “Ella tiene que quedarse
huérfana. Estamos obligados a amparar a
alguien. ¿No crees tú?”.
Já
o Padre Renteria é a representação da Igreja e de seu poder sobre
os moradores de Comala. O padre é condescendente às atrocidades que
ocorrem na cidade por parte de Pedro Páramo e seu filho Miguel
Páramo. Renteria sabe através das confissões de Dorotea que ela
arranjara muitas mulheres a Miguel, que por sua vez as abusava: “Pos
que yo era la que conchavaba las muchachas a Miguelito.”. “Usted
sabe: la hora en que estaban solas y en que él podía agarrarlas
descuidadas”.
Entre
as abusadas estava a própria sobrinha do padre, Anita, que havia
sido estuprada por Miguel: “Me agarró de noche y en lo oscuro.”.
“Soy Miguel Páramo, Ana. No te asustes. Eso me dijo”. Apesar do
mal caráter de Miguel, no dia de seu funeral, Renteria lhe dá o
perdão em troca de dinheiro dado por Pedro Páramo: “Yo le he dado
el perdón… Él
puede comprar la salvación”.
O perdão acontece não por sua qualidade de padre, mas sim porque
Renteria é subordinado de Pedro Páramo, que é o homem mais rico e
poderoso cidade: “Porque
ésta es la verdad; ellos (los ricos) me dan mi mantenimiento. De los
pobres no consigo nada; las oraciones no llenan el estómago.”.
Dessa
maneira, Pedro Páramo e o padre Renteria se convertem juntos em
tiranos no aspecto social e religioso ao povo de Comala.
A
propósito
dessa
observação, é possível realizar um paralelo ao contexto de
Revolução Mexicana ao qual o livro está inserido. Durante o regime
de Porfirio Díaz (1884-1911), uma
série de leis de demarcações faziam que a maior parte das terras
cultiváveis estivessem na mão de poucas famílias. Nesse momento,
as leis favoreciam fazendeiros e latifundiários como o personagem
fictício Pedro Páramo.
Esse
período da história é marcado por conflitos armados entre
guerrilhas e o Estado, realizados por diversos movimentos
revolucionários. Entre eles o exército Libertador do Sul, com
Emiliano Zapata, bem como outras Divisões espalhadas pelo país. Em
uma conversa entre Damasio e Pedro Páramo, é citado quando um
desses grupos armados chega a região onde fica Comala, mas
especificamente a divisão de Pancho Villa: “Villistas, ¿sabe
usted? Vienen del Norte, arriando parejo con todo lo que encuentran”.
Contudo, essas marcas são apresentadas no livro de maneira sutil, e
não estão relacionados diretamente à história da novela.
O
realismo maravilhoso
O
boom
latino-americano busca outras formas de escrita, a exemplo de Pedro
Páramo, que tem sua narrativa em um espaço-temporal não linear. O
realismo maravilhoso busca além disso a cultura popular, o folclore
e o mítico e os apresenta de maneira natural, sem problematização
ou explicação racional. A procura por uma identidade
latino-americana abarca na mescla cultural, que em contato com a
literatura europeia, cria uma outra estrutura: a transculturação.
Na
novela de Juan Rulfo, os mortos ganham vida. Não há um narrador,
mas vários personagens e vozes presentes (polifonia). Seus
personagens contam suas histórias através da oralidade, remetendo a
cultura popular da língua falada e a memorização. Essa oralidade
vive nas pessoas que passam suas histórias e lendas uns aos outros.
Ao mesmo tempo, essas histórias são trazidas para o livro por meio
da cultura letrada.
Dessa
maneira há cosmovisões de mundo que se impõem na narrativa.
Enquanto no mundo europeu há um pensamento mais racional
(iluminista), na literatura latina se busca pensar a partir de visões
que expliquem o mundo através do mítico (maravilhoso).
A
história do livro Pedro Páramo se inicia quando Juan Preciado chega
à cidade de Comala, porém quando ela já está abandonada. Todos os
personagens que vão aparecendo no decorrer da história já estão
mortos. Ou seja, o que lemos nos diálogos, na verdade tratam-se de
vozes, de murmulhos que escutamos
e que invadem a narrativa a todo o momento: “-¿Y cómo se llama
usted? -Abundio -me contestó. Pero ya no alcancé a oír el
apellido.”.
Nesse momento não sabemos o sobrenome de Abundio porque não o conseguimos escutar. Mais a frente, o diálogo entre Juan e Damiana é interrompido porque ela (a voz) desaparece e ele já não pode mais ouvi-la: “-¿Está usted viva, Damiana? ¡Dígame, Damiana! Y me encontré de pronto solo en aquellas calles vacías.”. A história de Ruan Rulfo não deve ser apenas lida, mas também escutada, porque são lembranças contadas pelos mortos.
Nesse momento não sabemos o sobrenome de Abundio porque não o conseguimos escutar. Mais a frente, o diálogo entre Juan e Damiana é interrompido porque ela (a voz) desaparece e ele já não pode mais ouvi-la: “-¿Está usted viva, Damiana? ¡Dígame, Damiana! Y me encontré de pronto solo en aquellas calles vacías.”. A história de Ruan Rulfo não deve ser apenas lida, mas também escutada, porque são lembranças contadas pelos mortos.
Conforme
Juan vai entrando na cidade, mais vozes e mais histórias vão
aparecendo e entrelaçando-se. Essas histórias são contadas através
da oralidade e são memórias dos que viveram ali. É possível ver
essa interferência que ocorre através da fala da mãe de Juan:
“Allá
me oirás mejor. Estaré más cerca de ti.
Encontrarás
más cercana la voz de mis recuerdos que la de mi muerte, si es que
alguna vez la muerte ha tenido alguna voz. Mi
madre... la viva.”. Essas informações e detalhes nos são
contados por lembranças de pessoas que vão se sobrepondo sem
nenhuma discriminação, tornando a leitura não linear e atemporal.
Quando
Juan Preciado encontra Doña Eduviges, essa lhe diz que sua mãe
Dolores Preciado a havia contado de sua chega: “-Ella me avisó que
usted vendría. Y hoy precisamente. Que llegaría hoy. -¿Quién? ¿Mi
madre? -Sí. Ella.”. Essa situação é estranha pois Dolores já
estava morta e não poderia ter se comunicado com a amiga, contudo
esse diálogo não é reflexionado: “Yo no supe qué pensar. Ni
ella me dejó en qué pensar: -Éste es su cuarto -me dijo.”.
O
mesmo volta a acontecer mais adiante no diálogo entre os dois, a
respeito de Abundio que indica a casa de Eduviges para Juan e ela o
contesta: “-No debe ser él. Además, Abundio ya murió. Debe haber
muerto seguramente. ¿Te das cuenta? Así que no puede ser él.
-Estoy de acuerdo con usted.”. Novamente não há uma preocupação
em explicar de maneira racional os fatos sobrenaturais que ocorrem. E
nem virão a ser no decorrer do livro.
Há
outros diversos momentos em que o diálogo entre mortos e vivos nos é
apresentado de maneira banal, como quando Eduviges conversa com
Miguel Parámo, logo após ele morrer ao cair do cavalo: “-No. Loco
no, Miguel. Debes estar muerto. Acuérdate que te dijeron que ese
caballo te iba a matar algún día.”.
E
até mesmo entre morto com morto, por exemplo, quando Juan e Damiana
caminham juntos pela cidade e ela lhe diz que há pouco havia
encontrado sua irmã que estava morta: “Ni más ni menos, ahora que
venía, encontré un velorio.
»-¡Damiana!
¡Ruega a Dios por mí, Damiana! -¿Qué
andas haciendo aquí? -le pregunté. Mi hermana Sixtina, por si no lo
sabes, murió cuando yo tenía 12 años. -Este
pueblo está lleno de ecos.”.
Ela
(sua voz e lembranças) logo desaparecem, e deixam Juan Preciado
sozinho: “-¡Damiana! -grité-. ¡Damiana Cisneros! Me
contestó el eco: «¡... ana... neros...! ¡... ana... neros...!».”.
Não
por muito tempo, pois logo novas vozes vão aparecendo dando
continuidade à história, porém de maneira fragmentada; em pedaços
atemporais. Essas partes vão somando-se a outras de maneira não
linear. Ocorrem diversas intervenções de lembranças dos mais
variados personagens no decorrer da história.
Essa
forma narrativa proposta pelo realismo maravilhoso, parte de uma
concepção estética própria do boom
latino-americano,
em que o termo aculturação é substituído pelo termo
transculturação. Dessa maneira, o pensamento negativo de que a
cultura europeia sobrepunha os traços literários latinos, no
primeiro, é trocado pela ideia de uma luta saudável e sem
hierarquia entre as duas culturas, no segundo, gerando dessa maneira
uma terceira. Na obra de Pedro Páramo, isso se dá, dentre outras
maneiras, a partir da mescla entre a cultura letrada da Europa e a
tradição dos povos latino-americanos pela cultura oral.