sábado, 6 de agosto de 2016

Análise crítica do livro Pedro Páramo, de Juan Rulfo



O livro Pedro Páramo, publicado em 1955, foi a primeira novela do escritor mexicano Juan Rulfo. Sua obra influenciou no desenvolvimento do movimento literário realismo mágico, dentro do contexto do boom latino-americano. Os escritores desse período que tiveram como destaque os anos 60 e 70, buscaram desafiar e superar o status quo estabelecido na literatura da época através da criação de obras experimentais. Fazem parte desse círculo do boom latino-americano os escritores da época que propuseram uma nova estética de narrativa literária, baseada no maravilhoso, nos contos fantásticos e de crítica à realidade social.

A história do livro Pedro Páramo é iniciada a partir de Juan Preciado, filho de Pedro Páramo, dono da fazendo Media Luna e cacique da cidade fictícia de Comala, onde se desenvolve o romance. 

Juan Preciado chega a cidade de Comala por influência de sua mãe, que em leito de morte, lhe pede que vá para a cidade encontrar seu pai e reclamar o que lhe é de direito, “Le apreté sus manos en señal de que lo haría; pues ella estaba por morirse… No vayas a pedirle nada. Exígele lo nuestro”.

Pedro Páramo, pai de Juan Preciado, é um grande latifundiário que domina e controla a cidade de Comala. Seu crescimento econômico acontece quando se casa com Dolores Preciado, mãe de Juan e herdeira de muitas terras. Através de seu prestígio e com a ajuda de seus jagunços El Ticuate e Fulgor Sedano, Pedro Páramo torna-se um homem muito respeitado na cidade.

Junto ao Padre Renteria, os dois detêm grande poder sobre a vida e a morte das pessoas na cidade. Pedro Páramo é um homem com autoridade acima de todos e que manda torturar e matar quando lhe parece conveniente. Como quando ordena assassinar o pai de Susana, Bartolomé San Juan, para poder casar-se com ela. Em conversa, Pedro Páramo e Fulgor Sedano acordam a morte do velho: “Ella tiene que quedarse huérfana. Estamos obligados a amparar a alguien. ¿No crees tú?”.

Já o Padre Renteria é a representação da Igreja e de seu poder sobre os moradores de Comala. O padre é condescendente às atrocidades que ocorrem na cidade por parte de Pedro Páramo e seu filho Miguel Páramo. Renteria sabe através das confissões de Dorotea que ela arranjara muitas mulheres a Miguel, que por sua vez as abusava: “Pos que yo era la que conchavaba las muchachas a Miguelito.”. “Usted sabe: la hora en que estaban solas y en que él podía agarrarlas descuidadas”.

Entre as abusadas estava a própria sobrinha do padre, Anita, que havia sido estuprada por Miguel: “Me agarró de noche y en lo oscuro.”. “Soy Miguel Páramo, Ana. No te asustes. Eso me dijo”. Apesar do mal caráter de Miguel, no dia de seu funeral, Renteria lhe dá o perdão em troca de dinheiro dado por Pedro Páramo: “Yo le he dado el perdón… Él puede comprar la salvación”. O perdão acontece não por sua qualidade de padre, mas sim porque Renteria é subordinado de Pedro Páramo, que é o homem mais rico e poderoso cidade: Porque ésta es la verdad; ellos (los ricos) me dan mi mantenimiento. De los pobres no consigo nada; las oraciones no llenan el estómago.”.

Dessa maneira, Pedro Páramo e o padre Renteria se convertem juntos em tiranos no aspecto social e religioso ao povo de Comala. A propósito dessa observação, é possível realizar um paralelo ao contexto de Revolução Mexicana ao qual o livro está inserido. Durante o regime de Porfirio Díaz (1884-1911), uma série de leis de demarcações faziam que a maior parte das terras cultiváveis estivessem na mão de poucas famílias. Nesse momento, as leis favoreciam fazendeiros e latifundiários como o personagem fictício Pedro Páramo.

Esse período da história é marcado por conflitos armados entre guerrilhas e o Estado, realizados por diversos movimentos revolucionários. Entre eles o exército Libertador do Sul, com Emiliano Zapata, bem como outras Divisões espalhadas pelo país. Em uma conversa entre Damasio e Pedro Páramo, é citado quando um desses grupos armados chega a região onde fica Comala, mas especificamente a divisão de Pancho Villa: “Villistas, ¿sabe usted? Vienen del Norte, arriando parejo con todo lo que encuentran”. Contudo, essas marcas são apresentadas no livro de maneira sutil, e não estão relacionados diretamente à história da novela.

O realismo maravilhoso

O boom latino-americano busca outras formas de escrita, a exemplo de Pedro Páramo, que tem sua narrativa em um espaço-temporal não linear. O realismo maravilhoso busca além disso a cultura popular, o folclore e o mítico e os apresenta de maneira natural, sem problematização ou explicação racional. A procura por uma identidade latino-americana abarca na mescla cultural, que em contato com a literatura europeia, cria uma outra estrutura: a transculturação.

Na novela de Juan Rulfo, os mortos ganham vida. Não há um narrador, mas vários personagens e vozes presentes (polifonia). Seus personagens contam suas histórias através da oralidade, remetendo a cultura popular da língua falada e a memorização. Essa oralidade vive nas pessoas que passam suas histórias e lendas uns aos outros. Ao mesmo tempo, essas histórias são trazidas para o livro por meio da cultura letrada.

Dessa maneira há cosmovisões de mundo que se impõem na narrativa. Enquanto no mundo europeu há um pensamento mais racional (iluminista), na literatura latina se busca pensar a partir de visões que expliquem o mundo através do mítico (maravilhoso).

A história do livro Pedro Páramo se inicia quando Juan Preciado chega à cidade de Comala, porém quando ela já está abandonada. Todos os personagens que vão aparecendo no decorrer da história já estão mortos. Ou seja, o que lemos nos diálogos, na verdade tratam-se de vozes, de murmulhos que escutamos e que invadem a narrativa a todo o momento: “-¿Y cómo se llama usted? -Abundio -me contestó. Pero ya no alcancé a oír el apellido.”. 

Nesse momento não sabemos o sobrenome de Abundio porque não o conseguimos escutar. Mais a frente, o diálogo entre Juan e Damiana é interrompido porque ela (a voz) desaparece e ele já não pode mais ouvi-la: “-¿Está usted viva, Damiana? ¡Dígame, Damiana! Y me encontré de pronto solo en aquellas calles vacías.”. A história de Ruan Rulfo não deve ser apenas lida, mas também escutada, porque são lembranças contadas pelos mortos.

Conforme Juan vai entrando na cidade, mais vozes e mais histórias vão aparecendo e entrelaçando-se. Essas histórias são contadas através da oralidade e são memórias dos que viveram ali. É possível ver essa interferência que ocorre através da fala da mãe de Juan: “Allá me oirás mejor. Estaré más cerca de ti. Encontrarás más cercana la voz de mis recuerdos que la de mi muerte, si es que alguna vez la muerte ha tenido alguna voz. Mi madre... la viva.”. Essas informações e detalhes nos são contados por lembranças de pessoas que vão se sobrepondo sem nenhuma discriminação, tornando a leitura não linear e atemporal.

Quando Juan Preciado encontra Doña Eduviges, essa lhe diz que sua mãe Dolores Preciado a havia contado de sua chega: “-Ella me avisó que usted vendría. Y hoy precisamente. Que llegaría hoy. -¿Quién? ¿Mi madre? -Sí. Ella.”. Essa situação é estranha pois Dolores já estava morta e não poderia ter se comunicado com a amiga, contudo esse diálogo não é reflexionado: “Yo no supe qué pensar. Ni ella me dejó en qué pensar: -Éste es su cuarto -me dijo.”.

O mesmo volta a acontecer mais adiante no diálogo entre os dois, a respeito de Abundio que indica a casa de Eduviges para Juan e ela o contesta: “-No debe ser él. Además, Abundio ya murió. Debe haber muerto seguramente. ¿Te das cuenta? Así que no puede ser él. -Estoy de acuerdo con usted.”. Novamente não há uma preocupação em explicar de maneira racional os fatos sobrenaturais que ocorrem. E nem virão a ser no decorrer do livro.

Há outros diversos momentos em que o diálogo entre mortos e vivos nos é apresentado de maneira banal, como quando Eduviges conversa com Miguel Parámo, logo após ele morrer ao cair do cavalo: “-No. Loco no, Miguel. Debes estar muerto. Acuérdate que te dijeron que ese caballo te iba a matar algún día.”.

E até mesmo entre morto com morto, por exemplo, quando Juan e Damiana caminham juntos pela cidade e ela lhe diz que há pouco havia encontrado sua irmã que estava morta: “Ni más ni menos, ahora que venía, encontré un velorio. »-¡Damiana! ¡Ruega a Dios por mí, Damiana! -¿Qué andas haciendo aquí? -le pregunté. Mi hermana Sixtina, por si no lo sabes, murió cuando yo tenía 12 años. -Este pueblo está lleno de ecos.”.

Ela (sua voz e lembranças) logo desaparecem, e deixam Juan Preciado sozinho: “-¡Damiana! -grité-. ¡Damiana Cisneros! Me contestó el eco: «¡... ana... neros...! ¡... ana... neros...!».”.

Não por muito tempo, pois logo novas vozes vão aparecendo dando continuidade à história, porém de maneira fragmentada; em pedaços atemporais. Essas partes vão somando-se a outras de maneira não linear. Ocorrem diversas intervenções de lembranças dos mais variados personagens no decorrer da história.


Essa forma narrativa proposta pelo realismo maravilhoso, parte de uma concepção estética própria do boom latino-americano, em que o termo aculturação é substituído pelo termo transculturação. Dessa maneira, o pensamento negativo de que a cultura europeia sobrepunha os traços literários latinos, no primeiro, é trocado pela ideia de uma luta saudável e sem hierarquia entre as duas culturas, no segundo, gerando dessa maneira uma terceira. Na obra de Pedro Páramo, isso se dá, dentre outras maneiras, a partir da mescla entre a cultura letrada da Europa e a tradição dos povos latino-americanos pela cultura oral.