segunda-feira, 9 de maio de 2016

Análise crítica do livro Naufragios, de Álvar Núñez Cabeza de Vaca





O livro Naufrágios, escrito por Álvar Núñes Cabeza de Vaca, é uma crônica feita a partir de seus relatos enquanto esteve na região da Flórida, hoje pertencente aos Estados Unidos e a região da Nova Espanha, onde agora é território Mexicano.

Cabeza de Vaca nasce na Europa, mais precisamente em Sevilha, no ano aproximado de 1492 e parte em direção ao Novo Mundo em 1527. O autor abandona sua vida como soldado e embarca com mais 600 homens em uma expedição que chega na Flórida no ano seguinte, em 1528 por ordem de D. Carlos I (1516 – 1556). Todos chegam ao novo continente para reconhecimento territorial e, principalmente, para encontrar riquezas.

O livro de Álvar Núñez são relatos de viagens baseados em suas experiências enquanto náufrago europeu que passa anos sobrevivendo em meio a nativos norte americanos. Cabeza de Vaca descreve os costumes dos índios e escreve sobre sua sobrevivência como homem branco em terras distantes, porém sem uma precisão técnica ou científica. Ele não analisa a partir de uma visão antropológica, bem como também não há uma datação nem localidade específica. 

A escrita do livro não é feita através de manuscritos, visto que o autor perde todos os seus pertences básicos – incluindo as próprias vestimentas – e passa a viver de maneira natural como os nativos. O próprio autor passa a se comparar a cobra, que troca o couro duas vezes por ano, em alusão as roupas que pouco passa a usar (pág. 68). Dessa maneira, o livro só é escrito quando o autor retorna à Espanha, em 1537, feito sob uma perspectiva de um servil que relata seus serviços para o rei.

A partir da análise dos escritos de Cabeza de Vaca, podemos identificar diversas características que são importantes para a compreensão geral do livro. Sobre isso, Cabeza de Vaca constrói um retrato da cultura indígena descrita, mas também da sua própria cultura como observador, característica que pode ser vista indiretamente no texto. Nesse ponto é possível ver traços de alteridade, pois quando Cabeza de Vaca vê o outro e sua cultura, ele passa a pensar sobre si mesmo como indivíduo.

Os nativos por terem uma relação diferente com a escrita acabam tendo sua história contada pelo colonizador, ou seja, o autor toma como referência sua cultura para nomear, classificar e julgar o modo de vida desses povos. Muitas das imagens contidas no livro possuem uma perspectiva da imaginação e da observação de alguém que chega como colonizador, como quando o autor julga os índios pobres por serem pescadores (pág. 28). Porém, no decorrer da leitura, é possível ver uma mudança dessa perspectiva por parte de Cabeza de Vaca, quando ele passa a não mais se referir como cristão e se torna um ser à parte naquele cenário (pág. 59).

Essa mudança de um pensamento baseado nas convenções da Europa para de um pensamento emergido no outro só é possível devido ao contexto em que o autor se encontrava: como um sobrevivente em meio aos índios. Cabeza de Vaca presso na terra em que fora procurar por recursos que rendesse fortuna à coroa viu com o passar do tempo mudanças de hábitos radicais em sua vida. Como quando se alimenta de animais de maneira incomum; cavalos (pág. 26), restos de carne em couro e até mesmo cachorro (pág. 68). Álvar Núñez muda até mesmo sua função de tesoureiro e passa a ser um curandeiro (pág. 45), seguido e adorado por milhares de índios de diversas tribos (pág. 86).

Apesar de não ter uma intenção antropológica, o autor também acaba descrevendo seus relatos em uma linguagem muito imparcial e detalhista sobre os povos que ele conhece. Ele se refere aos índios como eles próprios se nomeiam: são os Apalache (pág. 10), os Autes (pág. 22). Outro exemplo é descrição sobre o ato de dar uma flecha como sinal de amizade (pág. 36) e sobre uma relação homossexual entre índios de uma determinada tribo (pág. 77). Contudo, há uma nomeação dos lugares a partir da visão do próprio autor (colonizador), como quando em meio a fome, muitos de seus companheiros de embarcação morrem e passam a comer uns aos outros e Cabeza de Vaca nomeia o local onde aquilo ocorre de Ilha do Mal Hado (pág. 40). Certamente o local teria um nome diferente para os nativos.

Ao fim da leitura, o que podemos observar é a abertura à mudança de perspectiva por parte do autor em relação ao seu papel inicial como colonizador, bem como também os nativos passam a vê-lo de forma diferente (como uma pessoa confiável e diferente de outros brancos). Dessa maneira, Cabeza de Vaca se torna um ser híbrido, bem como também sua escrita. Aculturado pela vivência com os índios, ele se propõe a um discurso ambíguo e mais horizontal, diferente do momento de sua chegada naquela terra e do início de seu livro.


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